A ampla defesa é um
princípio assegurado na Constituição de 1988. Essa garantia baseia-se no
direito à informação, no direito de manifestação e de ver seus
argumentos considerados. Contudo, o que é um direito torna-se abuso de
direito quando advogados violam os deveres de lealdade processual e
comportamento ético no processo, desvirtuando a própria ampla defesa. É a
chamada litigância de má-fé.
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal diz que “aos
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”. Porém, se uma das partes no processo age de
forma maldosa, seja com dolo ou culpa, utilizando procedimentos escusos
para vencer ou ainda, sabendo ser impossível vencer, para prolongar o
andamento do feito, o magistrado pode penalizar quem abusa do direito de
pedir.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), os ministros têm enfrentado
situações que demonstram haver cada vez menos tolerância com a
litigância de má-fé. O Tribunal tem se dedicado a reduzir tanto o acervo
quanto a duração dos processos em trâmite, e a tentativa de meramente
procrastinar o desfecho judicial, além de não encontrar abrigo na
jurisprudência, é vista como antiprofissionalismo. Os magistrados podem
condenar o litigante de má-fé, independentemente de um pedido nesse
sentido, em multa ou indenização à parte contrária.
Sucessivos e infindáveis
O artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil (CPC)
estabelece que a apresentação de embargos de declaração protelatórios
autoriza que o órgão julgador condene o embargante a pagar ao embargado
multa não excedente a 1% do valor da causa. Havendo a reiteração de
embargos protelatórios, é possível a majoração da multa a até 10%,
ficando condicionada a interposição de qualquer outro recurso ao
depósito do valor respectivo.
Em junho de 2012, a Terceira Turma aplicou multa por litigância de
má-fé de 1% sobre o valor da causa em razão de interposição, pela
segunda vez, de embargos de declaração com “intuito manifestamente
protelatório”, como avaliou o relator do processo, ministro Villas Bôas
Cueva. Insistente, a parte apresentou novos embargos (pela terceira vez)
e, em novembro, a Turma aumentou a multa para 5% (Ag 784.244).
O ministro Cueva esclareceu que os embargos de declaração são
recurso restrito, cujo objetivo é esclarecer o real sentido de decisão
em que se encontre obscuridade, contradição ou omissão. No caso, porém,
houve a reiteração dos argumentos que pretendiam modificar a decisão, o
que, para a Turma, denota o caráter protelatório dos embargos. O
ministro ainda condicionou a interposição de novos recursos ao depósito
da multa.
Majoração da multa
A mesma Turma, ao julgar o quarto recurso interno sobre o REsp
1.203.727, chegou a aplicar multa de 10% sobre o valor da causa. Foram
quatro embargos de declaração na insistência de ver reconhecida tese
sobre o termo inicial de prescrição em ação de cobrança de diferença de
indenização securitária. O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
afirmou que a matéria estava exaustivamente analisada e que houve a
“mera repetição de argumentos” já apresentados anteriormente.
A Quarta Turma, que também analisa questões de direito privado,
adotou medida semelhante no julgamento do Ag 1.237.606. O relator,
ministro Luis Felipe Salomão, nos segundos embargos de declaração, não
só aplicou multa de 10% sobre o valor da causa, como condenou a
recorrente a indenizar a parte contrária em R$ 5 mil reais.
Contra texto de lei
O artigo 17 do CPC elenca as hipóteses em que se reconhece a
litigância de má-fé. Uma delas é deduzir pretensão ou defesa contra
texto expresso de lei ou fato incontroverso. As demais são alterar a
verdade dos fatos; usar do processo para conseguir objetivo ilegal; opor
resistência injustificada ao andamento do processo; proceder de modo
temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provocar incidentes
manifestamente infundados e interpor recurso com intuito manifestamente
protelatório.
Em julgamento realizado em 2006, a ministra Nancy Andrighi explicou
que “não se caracteriza a litigância de má-fé por pretensão contra texto
expresso de lei, se a interpretação dada ao dispositivo pelo órgão
julgador for diversa daquela pretendida pela parte e houver
plausibilidade na tese defendida por esta” (REsp 764.320).
Já em outra hipótese analisada, a Primeira Turma, em 2005, condenou o
estado do Maranhão ao pagamento de multa por litigância de má-fé. No
caso, era contestada decisão que concedeu à parte contrária o benefício
da assistência judiciária, em razão de o serviço não ser prestado por
profissional da Defensoria Pública, mas por advogado escolhido pela
parte.
Ocorre que a Lei de Assistência Judiciária condiciona a concessão do
benefício à simples afirmação do postulante sobre seu estado de
pobreza. O relator, ministro José Delgado, já aposentado, entendeu que o
equívoco do estado contribuiu para o “injustificado retardamento da
jurisdição buscada” (REsp 739.064).
Esfera penal
A litigância de má-fé também é combatida nos processos que debatem
matéria penal. O ministro Marco Aurélio Bellizze, presidente da Quinta
Turma do STJ, esclareceu que, muito embora na esfera penal não seja
viável a fixação de multa por litigância de má-fé, em tais casos “é
perfeitamente possível, antes mesmo do trânsito em julgado da
condenação, a baixa dos autos, independentemente da publicação do
acórdão, para que se inicie o cumprimento da pena que lhe foi imposta”.
A afirmação foi feita no julgamento de um agravo de instrumento, em
outubro de 2012 (Ag 1.425.288). Era a terceira vez que a defesa do réu
havia interposto agravo regimental, recurso destinado a combater decisão
monocrática. No caso, a defesa apresentou por duas vezes tal recurso
contra decisão do colegiado, a Quinta Turma. “Somente é cabível agravo
regimental contra decisão monocrática, constituindo erro grosseiro e
inescusável a interposição desse recurso para impugnar decisão
colegiada”, repreendeu o ministro Bellizze em seu voto.
O ministro considerou que a insistência da defesa no mesmo erro
revelou o seu nítido caráter protelatório, no intuito de impedir o
trânsito em julgado da ação penal e viabilizar uma possível prescrição
da pretensão punitiva.
Em outro caso, julgado em 2011, o então desembargador convocado
Celso Limongi, após os segundos embargos de declaração no julgamento de
um agravo, também determinou o imediato início da execução da pena,
independentemente da publicação do acórdão ou da interposição de
eventual recurso (Ag 1.141.088). A mesma medida foi adotada pela
ministra Laurita Vaz ao julgar o quarto recurso interno contra uma
decisão sua (Ag 1.112.715).
Petições incabíveis
“A interposição descabida de recursos (ou outro remédio processual)
acaba por configurar abuso do poder de recorrer.” Foi o que afirmou o
ministro Felix Fischer ao decidir sobre o esgotamento da prestação
jurisdicional do STJ no caso da condenação de réus do episódio conhecido
como “Massacre de Carajás”, ocorrido no Pará, em 1996 (EREsp 818.815).
O recurso especial sustentava haver nulidades nos quesitos
formulados pelo juiz durante o julgamento no Tribunal do Júri. Autuado
em 2006, o recurso da defesa do coronel Mário Pantoja foi negado pela
Quinta Turma em dezembro de 2009. Em fevereiro de 2010, a defesa
apresentou novo recurso, chamado embargos de divergência. No mês
seguinte, o recurso foi indeferido liminarmente. Novo recurso e a
posição foi confirmada pela Terceira Seção. Houve mais um recurso à
Seção, outro recurso ao Supremo Tribunal Federal (que não foi admitido) e
uma sequência de mais cinco recursos contra essa última decisão.
O ministro Fischer, então vice-presidente do STJ, determinou a baixa
definitiva dos autos, independentemente do trânsito em julgado, em
razão da interposição descabida e desmedida dos recursos. Neste caso,
destacou o ministro, é evidente a intenção da defesa em prolongar
indefinidamente o exercício da jurisdição, com petições desprovidas de
qualquer razão e notoriamente incabíveis.
Direito de recorrer
Em contraponto a essa jurisprudência, os ministros do STJ também têm
reconhecido que é preciso distinguir a litigância de má-fé ou o ato
atentatório à dignidade da Justiça do exercício do direito de recorrer. A
Corte já decidiu que "a aplicação de penalidades por litigância de
má-fé exige dolo específico, perfeitamente identificável a olhos
desarmados, sem o qual se pune indevidamente a parte que se vale de
direitos constitucionalmente protegidos (ação e defesa)" (REsp 906.269).
Em julgamento realizado em 2009, o ministro Fernando Gonçalves, já
aposentado, decidiu que a interposição de recurso legalmente previsto
não poderia ser considerada litigância de má-fé. No caso analisado, a
Quarta Turma excluiu a multa aplicada por conta do ajuizamento
simultâneo de recurso de apelação e de agravo de instrumento – o
primeiro contra a sentença e o segundo contra decisão proferida em
exceção de suspeição –, ainda que a fundamentação e o objetivo de ambos
fossem parcialmente coincidentes.
Para os ministros, no caso ficou claro o legítimo exercício do
direito de ação (REsp 479.876). No mesmo julgamento, a Turma ainda
afastou a multa aplicada em grau de recurso, por ocasião do julgamento
de embargos opostos contra o acórdão de apelação. Os ministros aplicaram
a Súmula 98 do STJ, segundo a qual "embargos de declaração manifestados
com notório propósito de prequestionamento não têm caráter
protelatório".
Em 2012, ao julgar um recurso, o ministro Luis Felipe Salomão
afastou a multa aplicada pela segunda instância, considerando que “não
tem lugar a condenação por litigância de má-fé quando se mostrar
evidente o desinteresse dos recorrentes em procrastinar o feito”. Para o
ministro, no caso analisado, ocorreu o legítimo exercício do direito de
recorrer, “prática na qual a jurisprudência, em diversas ocasiões, não
reconheceu a caracterização de malícia processual” (REsp 1.012.325).
(STJ - Ag 1425288 - Ag 1141088 - Ag 1112715 - EREsp 818815 - REsp 479876
REsp 1012325 - Ag 784244 - REsp 764320 - REsp 739064 - REsp 1203727
Ag 1237606 - REsp 906269)
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