O número de crianças e
jovens aptos para a adoção no Brasil é de 5,4 mil, segundo dados de
outubro de 2013 do Cadastro Nacional de Adoção (CNA). O cadastro foi
criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em abril de 2008, para
centralizar as informações dos Tribunais de Justiça do país sobre
pretendentes e crianças disponíveis para encontrar uma nova família – e
também para auxiliar os juízes na condução dos processos de adoção.
Apesar de seu esforço para acelerar esses procedimentos, a Justiça ainda não consegue evitar a prática de algumas famílias, que se utilizam do “jeitinho brasileiro” para adotar crianças. É a chamada adoção à brasileira.
A adoção à brasileira se caracteriza “pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança”, explicou a ministra Nancy Andrighi em um de seus julgados sobre o tema.
Apesar de seu esforço para acelerar esses procedimentos, a Justiça ainda não consegue evitar a prática de algumas famílias, que se utilizam do “jeitinho brasileiro” para adotar crianças. É a chamada adoção à brasileira.
A adoção à brasileira se caracteriza “pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança”, explicou a ministra Nancy Andrighi em um de seus julgados sobre o tema.
Da diferenciação à igualdade
A Constituição Federal de 1988 (CF) encerrou definitivamente a
diferenciação de direitos estabelecida pelo Código Civil de 1916, entre
filhos legítimos, ilegítimos e adotados (artigos 337 a 378).
Estabeleceu no parágrafo 6º do artigo 227 que os filhos provindos ou
não do casamento, ou de adoção, possuem os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.
O Código Civil de 2002 (CC/02) seguiu o ordenamento constitucional
ao tratar do assunto no seu artigo 1.596. Definiu no artigo 1.618 que a
adoção de crianças e adolescentes deveria ser feita de acordo com o
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90) –, o qual foi
aperfeiçoado pela Lei 12.010/09, chamada Lei da Adoção, aprimorando a
sistemática para garantia do direito à convivência familiar a todas as
crianças e adolescentes.
Ao tratar do assunto, o Código Penal estabeleceu que a prática da
adoção à brasileira é criminosa, prevendo inclusive pena de reclusão de
dois a seis anos. É o chamado crime contra o estado de filiação, trazido
pelo artigo 242: dar parto alheio como próprio; registrar como seu o
filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou
alterando direito inerente ao estado civil.
Suspeita de tráfico
Além de sujeitar o adotante a essas sanções penais, a adoção
informal pode dar margem à suspeita de outros crimes, como se viu em
caso julgado recentemente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob
relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
O recurso em habeas corpus trouxe a história de um bebê
recém-nascido, entregue pelos pais biológicos a um casal. A entrega foi
intermediada por terceiro, que possivelmente recebeu R$ 14 mil. A mãe
biológica também teria recebido uma quantia de R$ 5 mil pela entrega da
filha.
No registro da criança constou o nome da mãe biológica e do pai
adotante, que se declarou genitor do bebê. A criança permaneceu com o
casal adotante por aproximadamente quatro meses, até ser recolhida a um
abrigo em virtude da suspeita de tráfico de criança.
O Ministério Público de Santa Catarina ajuizou ação de busca e
apreensão do bebê, com pedido de destituição do poder familiar do pai
registral e da mãe biológica, bem como de nulidade do registro de
nascimento. O juízo de primeira instância deferiu em caráter liminar o
acolhimento institucional da criança. O casal impetrou habeas corpus
pedindo o desabrigamento da criança e a sua guarda provisória.
Com a negativa do habeas corpus pelo Tribunal de Justiça de Santa
Catarina (TJSC), o casal recorreu ao STJ. Afirmou que a criança estava
sofrendo “danos psicológicos irreversíveis” em virtude da retirada do
lar e que não houve tráfico de criança.
Antes de 2009, o STJ tinha o entendimento pacífico de que não era
possível a discussão de questões relativas à guarda e adoção de crianças
e adolescentes utilizando-se a via do habeas corpus. Entretanto, em
julgamentos a partir dessa data, os magistrados da Corte têm
excepcionado o entendimento “à luz do superior interesse da criança e do
adolescente”, esclareceu Sanseverino. Segundo o ministro, a análise do
caso deve se limitar à validade da determinação legal de acolhimento
institucional do menor e posterior encaminhamento para adoção.
Situação de risco
A Terceira Turma negou provimento ao recurso. De acordo com
Sanseverino, não houve ilegalidade no acolhimento institucional da
criança. O ministro explicou que o acolhimento não foi devido apenas à
preservação do CNA, legalidade contida no artigo 50 do ECA, ou em
virtude da fraude no registro, mas também porque foi identificada uma
“situação de risco concreto à integridade moral e psicológica da
infante, diante da suspeita da ocorrência de crime de tráfico de
criança”.
Ao analisar os autos, Sanseverino afirmou que, mesmo sem a
comprovação do pagamento pela criança, ela foi efetivamente negociada
pelos envolvidos. O ministro ressaltou que a conduta do casal, que
passou por cima das normas legais para alcançar seu objetivo, “coloca em
dúvida os seus padrões éticos, tão necessários para a criação de uma
criança”.
“Tal situação, a meu ver, não pode ser endossada pelo Poder
Judiciário, sob pena de desestimular pretensos adotantes a seguir os
trâmites legais, e, em última análise, estimular o tão repugnante
comércio de bebês”, garantiu o ministro.
Parentalidade socioafetiva
A jurisprudência do STJ tem exemplos de casos em que crianças foram
adotadas ilegalmente, de maneira consciente e voluntária, por pessoas
que após determinado tempo resolveram negar a paternidade, ignorando o
vínculo socioafetivo criado. Nesses julgados, é possível perceber a
prevalência da paternidade socioafetiva.
Nesse sentido, foi julgado o recurso de um pai que requereu a
anulação do registro de nascimento das filhas da esposa. Ele alegou que
foi induzido a registrá-las como suas filhas, quando na realidade não o
eram. Só depois da propositura da ação, as filhas descobriram que ele
não era seu pai biológico.
O pai alegou que deveria prevalecer a verdade real, mesmo havendo
vínculo socioafetivo entre eles. Sustentou que o registro deveria ser
anulado por erro de vontade. Porém, não obteve sucesso no recurso
interposto no STJ.
A Quarta Turma negou provimento ao recurso do pai, acompanhando o
voto do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Segundo ele, nos dias de
hoje, a paternidade “deve ser considerada gênero do qual são espécies a
paternidade biológica e a socioafetiva. Assim, em conformidade com os
princípios do CC/02 e da CF/88, o êxito em ação negatória de paternidade
depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem
biológica, e também de que não tenha sido constituído o estado de
filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na
convivência familiar”.
Salomão observou que a pretensão voltada à impugnação da paternidade
não pode prosperar, “quando fundada apenas na origem genética, mas em
aberto conflito com a paternidade socioafetiva”.
O ministro ponderou que se a declaração sobre a origem genética
realizada pelo autor na ocasião do registro foi uma inverdade,
“certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as
então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em
si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da
alegação de falsidade ou erro”.
Limbo jurídico
Entendimento semelhante foi proferido pela Terceira Turma ao julgar
recurso especial de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Um pai ajuizou
ação negatória de paternidade, na qual alegou tê-la reconhecido sob
ameaças e pressões da mãe da criança. Requereu também a realização de
exame de DNA, para comprovar a inexistência de vínculo biológico.
A ação foi proposta quando a criança já tinha cinco anos de idade.
Em virtude da comprovação da ausência de vínculo biológico pelo exame,
tanto a primeira instância quanto o TJSC determinaram a retificação do
registro civil.
Ao julgar o recurso do Ministério Publico local contra o acórdão do
tribunal catarinense, o STJ decidiu que não ocorreu vício de
consentimento quando do registro da criança, nem que o pai tenha sido
induzido a erro.
De acordo com Nancy Andrighi, em processos que lidam com o direito
de filiação, “as diretrizes determinantes da validade de uma declaração
de reconhecimento de paternidade devem ser fixadas com extremo zelo e
cuidado, para que não haja possibilidade de uma criança ser prejudicada
por um capricho de pessoa adulta que, conscientemente, reconhece
paternidade da qual duvidava, e depois de cinco anos se rebela contra a
declaração produzida, colocando a menor em limbo jurídico e
psicológico”.
A ministra afirmou que, mesmo na ausência do vínculo genético, o
registro da criança como filha, “realizado de forma consciente,
consolidou a filiação socioafetiva”. Para Nancy Andrighi, é “inequívoco”
o fato de que ele assumiu, “em ação volitiva, não coagida, a
paternidade sociafetiva”.
Em outro recurso, o ministro Massami Uyeda (hoje aposentado)
considerou que, “em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução
consiste em só permitir que o pai adotante busque a nulidade do
registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o
vínculo de socioafetividade com o adotado”.
Direito à verdade biológica
Outra discussão que surge no STJ é sobre a possibilidade de o
vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da
paternidade biológica ou a obrigação patrimonial.
Sobre o assunto, a Terceira Turma decidiu que o adotado ilegalmente,
mesmo usufruindo de uma relação socioafetiva com o pai registrário, tem
direito, se quiser, a tomar conhecimento de sua “real história” e ter
acesso à sua “verdade biológica”, pois “o reconhecimento do estado de
filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
assentado no princípio da dignidade da pessoa humana” – como afirmou a
relatora, ministra Nancy Andrighi.
No caso julgado, uma mulher em idade madura ajuizou ação de
investigação de paternidade, cumulada com petição de herança, pois o pai
já era falecido. Na ocasião do seu nascimento, ela foi registrada como
filha do marido de sua mãe, mesmo sendo filha biológica de outro homem.
Diante da confirmação do vínculo biológico trazida pelo exame de
DNA, os herdeiros do pai sustentaram que, nesse caso, deveria prevalecer
a paternidade socioafetiva em relação à biológica, pois se tratava de
um caso de adoção à brasileira. Alegaram ainda que tanto a adoção como o
registro civil eram irrevogáveis.
Segundo Nancy Andrighi, existe amplo reconhecimento da maternidade e
paternidade socioafetivas pela doutrina e jurisprudência, bem como a
possibilidade de ela prevalecer sobre a verdade biológica. “Trata-se do
fenômeno denominado pela doutrina como a ‘desbiologização da
paternidade’, o qual leva em consideração que a paternidade e a
maternidade estão mais estreitamente relacionadas à convivência familiar
do que ao mero vínculo biológico”, explicou a ministra.
Por outro lado, a ministra também esclareceu que, se é o próprio
filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico, não é razoável
que seja imposta a ele a prevalência da paternidade socioafetiva para
impedir sua pretensão.
Obrigação patrimonial
Mesmo nas hipóteses em que a adoção é feita de maneira legal, nos
termos do ECA e da Lei da Adoção, é assegurado ao adotado o direito de
conhecer sua origem biológica (artigo 48). Contudo, lembrou Nancy
Andrighi, quando uma adoção é efetivada pelos trâmites legais, há o
“rompimento definitivo do vínculo familiar”. E se o adotado desejar
conhecer sua origem biológica, “essa investigação não gera consequências
de cunho patrimonial”.
Diferentemente, na adoção à brasileira, “embora não caiba a anulação
do registro de nascimento (salvo na hipótese de erro), por iniciativa
daquele que fez a declaração falsa, diante da voluntariedade expressada
(artigo 1.604 do CC/02) e da necessidade de proteger os interesses do
próprio adotado, se a pretensão for investigatória e advier da própria
vontade do filho interessado, é assegurado a ele o direito à verdade e a
todas as suas consequências, incluindo as de caráter patrimonial”,
afirmou a ministra.
Busca pelos pais biológicos
Conforme afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em outro recurso
especial, “a tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre
prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e
depende sempre do exame do caso concreto”.
O recurso tratou da história de uma mulher registrada pelos pais
adotantes como se fossem seus genitores, depois de ter sido entregue
pela mãe biológica ainda bebê. Posteriormente, a mãe biológica passou a
conviver com ela como sua madrinha de batismo. O pai biológico
possivelmente nem sabia da existência da filha.
Na adolescência, ela soube que sua mãe era, na verdade, a madrinha.
Porém, somente após a morte dos pais registrais, e contando 47 anos de
idade, soube a identidade do pai biológico e propôs a ação de
investigação de paternidade e maternidade, cumulada com anulação de
registro.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) julgou
improcedente o pedido da autora, pois entendeu que a existência do
vínculo socioafetivo entre os pais registrais e a autora da ação
afastava a possibilidade de reconhecimento da paternidade biológica. No
STJ, o entendimento do tribunal gaúcho foi reformado. A Quarta Turma deu
provimento ao recurso da mulher.
De acordo com o relator, a paternidade biológica gera
“necessariamente” uma responsabilidade que não se desfaz com a prática
ilícita da adoção à brasileira, “independentemente da nobreza dos
desígnios que a motivaram”. No mesmo sentido, “a filiação socioafetiva
desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha
resultantes da filiação biológica, não podendo haver equiparação entre a
adoção regular e a chamada adoção à brasileira”.
Salomão explicou que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a
biológica para garantir direitos aos filhos, entretanto, ela não
prevalece quando é o filho que busca a paternidade biológica em
detrimento da socioafetiva.
O raciocínio deve ser aplicado para as adoções à brasileira, já que a
adoção legal, conforme dispõe o ECA, é irrevogável e desliga o adotado
de qualquer vínculo com pais e parentes (artigos 39, parágrafo 1º, e
41).
Pedido de terceiro
A Terceira Turma negou provimento ao recurso de um irmão que queria
anular o registro de nascimento da irmã, afirmando que o pai havia
praticado adoção ilegal.
A filha foi registrada em 1955, quando já possuía sete anos de idade
e, segundo o recorrente, por insistência da então companheira de seu
pai. Após aproximadamente 37 anos do registro, o fato foi tornado
público e a filha tomou conhecimento de como aconteceu o seu registro.
Daí se originou a ação ajuizada pelo irmão, para desconstituir a
declaração de paternidade feita por seu pai biológico em relação à irmã
adotada ilegalmente.
A relatora do caso foi a ministra Nancy Andrighi que, ao citar o
artigo 1.601 do CC/02, lembrou que se restringe ao marido a legitimidade
para contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, e ao
filho a legitimidade para ajuizamento de ação de prova de filiação
(artigo 1.606).
Todavia, a ministra ressaltou que esse leque foi ampliado pelo
artigo 1.604, legitimando aqueles que provassem a existência de erro ou
falsidade. Nesse último caso se encaixaria o interesse do irmão em
contestar a paternidade.
A relatora ponderou que, se de um lado não há vínculo biológico
entre o pai registral e a recorrida, a alteração do registro civil “deve
ser avaliada à luz da existência de uma relação de filiação
socioafetiva consolidada e construída sobre ações de boa-fé do pai
socioafetivo”.
Nancy Andrighi entendeu que o pai registral, mesmo sem possuir
vínculo biológico, ao registrar de forma consciente a criança como
filha, consolidou a filiação socioafetiva. E embora a adoção tenha
acontecido à margem da lei, a situação concretizou para a adotada a
condição de filha, “que não pode ser enjeitada por aquele que registrou,
nem ao menos contestada por terceiros”, avaliou.
De acordo com a ministra, a relação socioafetiva “não é constatada
somente por meio de um convívio perene, mas no momento da declaração do
pai registral, porque de outra forma se construiria relação filial
sujeita às intempéries da vida, que podem determinar o afastamento de
pessoas que mantinham íntima convivência, como de fato ocorreu na
espécie”.
Direitos assegurados
Dessa maneira, nos recursos em que os adotantes ilegais queiram,
tempos depois, negar a paternidade de seus filhos, ou quando terceiros
alegam erro ou falsidade no ato do registro, percebe-se a prevalência da
paternidade socioafetiva, “em nome da primazia dos interesses do
menor”, explicou Nancy Andrighi.
Nos casos em que os filhos adotados ilegalmente buscam o
reconhecimento dos pais biológicos, a tendência é que a verdade
biológica prevaleça, em razão do “princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana, estabelecido no artigo 1º, inciso III, da CF/88”, e que
traz em seu bojo “o direito à identidade biológica e pessoal” – ponderou
a ministra.
Os números dos processos citados no texto não são divulgados em razão de segredo judicial.
(STJ - 10/02/2014)
0 comentários
Postar um comentário
Pede-se a gentileza de observar as regras da boa educação e urbanidade.
IMPORTANTE: COMENTÁRIOS ANÔNIMOS NÃO TERÃO RESPOSTA.